“O futebol no Marrocos é uma religião”. É assim que o Michał Banasiak, especialista em política no esporte e colaborador da Forbes, explica a importância do desempenho do país na Copa do Mundo. Em entrevista ao Goal.pl, Michał Banasiak esclarece como o Marrocos sonha em receber uma Copa do Mundo e como as vitórias na Copa 2022 estão animando os torcedores a realizarem esse feito. Além disso, explica por que a seleção do Marrocos recebe o apoio e torcida de tantos outros países, seja pela localização ou pela religião.
Confira os destaques da entrevista.
A política alguma vez atravessou tanto no mundo do futebol como o faz agora com a seleção nacional marroquina?
Sim, mas acabamos não lembrando tão bem desses momentos. Além disso, vivemos agora na era das redes sociais, em que é muito mais fácil para qualquer manifestação política difundir-se em grandes eventos. Se as mesmas oportunidades tivessem existido em 1998, o jogo Irã e Estados Unidos da Copa na França teria nos bombardeado com influência política. Ou 1978 e a dimensão política do desempenho da equipe nacional argentina. A Copa do Mundo de 1934… Quando falamos desses eventos, esquecemos o que estava acontecendo. A questão é também o que queremos dizer com a intromissão da política no esporte. Porque, no caso de Marrocos, a dimensão é largamente positiva. Vemos o povo do mundo muçulmano, o povo da África, unido, enquanto que normalmente falamos da politização do esporte em um contexto ruim.
De certa forma, os tumultos que aconteceram em Bruxelas após o jogo Marrocos-Bélgica foi também politização, e do lado errado. Como pode uma pessoa educada na civilização europeia explicar esses acontecimentos?
Estou muito longe de ligar o comportamento das pessoas sob as bandeiras marroquinas, porque não lhes quero chamar de torcedores de esporte. Foi um vandalismo que usou a bola como desculpa para brigar com a polícia. A polícia belga explicou mais tarde que, de fato, alguns destes grupos já tinham provocado agentes antes do jogo. Ou seja, não era que alguém estivesse a celebrar a vitória do Marrocos desta forma. Também não é verdade que os tumultos começaram quando o primeiro gol do time não foi reconhecido.
Por outro lado, se procurássemos alguns motivos sociológicos, era provavelmente uma forma de revanchismo doméstico. Poderia ser uma forma de mostrar aos belgas, franceses ou espanhóis, que têm tanto por trás deles em questões de colonialismo, que estão melhor em campo. E, por isso, os marroquinos poderiam querer celebrar e fazer barulho. Mas essa é uma questão secundária na minha opinião, porque se olharmos para a escala dos acontecimentos, veremos que (as comemorações) foram sobretudo passeios de carro, buzinas, agitação de bandeiras e fogo-de-artifício. No entanto, as imagens de ruas em chamas e tumultos que ganharam espaço nos meios de comunicação.
No Brasil, o futebol é uma religião. Isso também está acontecendo no Marrocos neste momento?
Não apenas neste momento. O Marrocos está apaixonado pelo futebol há muito tempo e a prova está na questão de se candidatar a receber a Copa do Mundo. Marrocos é o país que, de todos os países sem ser campeão da Copa, se candidatou ao torneio com mais frequência. Já teve cinco tentativas sem sucesso, e estão atualmente a preparar-se para uma sexta em 2030.
Vale também a pena olhar para o sentimento público. Quando um país se candidata na Europa, há uma massa de pessoas que dizem que vale a pena gastar o dinheiro em outra coisa. No Marrocos, uma pesquisa recente mostrou que o público, apesar de saber do quão caro é – pois este evento consumiria 16% do seu PIB – é 97% a favor de receber a Copa! Eles têm fome da bola ao máximo. E agora que há êxitos, ainda mais. O futebol no Marrocos é uma religião e isso também pode ser visto no cotidiano. Só é preciso ver como os estádios estão cheios nos jogos da liga local.
O que os jogadores da seleção do Marrocos podem esperar no retorno para casa? Para além da adoração, que é óbvia aqui.
Estou certo de que não haveria discussão sobre um possível prêmio em dinheiro. Todos ficariam admirados pelos jogadores de futebol serem recompensados desta forma. Embora tenha visto alguns jornalistas marroquinos que se gabam de que pelo menos alguns dos jogadores do time poderiam doar todos os honorários à caridade, pois já ganham bem e não precisam desse bônus. Além disso, o que o time pode esperar? Que os jogadores terão o status de semideuses, com certeza.
Será um exagero dizer que pela primeira vez na história da Copa do Mundo, um país jogará a final não só por si, mas por dezenas de outros países?
Marrocos está provavelmente a jogar em primeiro lugar por si próprio. O treinador de Marrocos tem fugido de questões políticas ultimamente, não querendo ser colocado em nenhum mapa de jogos políticos. Especialmente porque – por uma reviravolta do destino – os jogos desta seleção organizaram-se de tal forma que ou jogam contra países com uma grande diáspora marroquina ou com os quais têm laços históricos. Como a Espanha ou a França.
E o mundo muçulmano, árabe, africano, se identifica com o Marrocos. O país é, ao mesmo tempo, um “dedo apontado” no nariz do mundo ocidental, que gosta de dar lições e moralizar o mundo árabe. Antes da Copa do Mundo, vimos uma narrativa muito dura nos meios de comunicação social ocidentais quando se tratou dos costumes do Qatar. Isto não agradou a todo o mundo árabe.
As pessoas não apenas do Qatar levantaram-se e disseram: esperem um minuto, temos aqui as nossas próprias regras e vivemos a nossa vida cotidiana sem vocês, por isso não nos digam como viver nos nossos países. E um mecanismo semelhante acontece com a seleção do Marrocos. Tornou-se um time que representa toda a coligação anti-ocidental e mostra ao Ocidente o seu lugar nas fileiras dos esportes
É uma grande diferença entre o mundo ocidental porque, por exemplo, se Marrocos jogasse contra a Argentina católica na final, o mundo católico ainda estaria dividido no apoio. E o árabe não se divide.
É exatamente assim que as coisas são. O mundo árabe é governado por leis diferentes. Na nossa, a religião que seguimos não tem qualquer relação com o fato de torcermos por alguém mais fortemente ou não. Nem a nossa localização no mapa. De fato, a localização pode ser a razão para desejar má sorte a alguém.
Um jornal brasileiro publicou uma reportagem de primeira página antes do jogo Polônia e Argentina com uma fotografia de Lewandowski em pé com uma camisa dividida ao meio – em parte com as cores do Brasil e em parte com as cores da Polônia. Tudo na torcida para que a Polônia derrotasse a Argentina no torneio.
Nós, polacos, também celebramos o fracasso dos alemães na Copa do Mundo, tanto como a nossa própria vitória. E nos países árabes, uma das razões para aplaudir é um sentimento de pertença comum a uma comunidade anti-ocidental, porque eu não quero dizer anticristã. O Ocidente é visto ali como um foco de desmoralização, que ainda por cima quer criticar os costumes árabes.
O Islamismo, por outro lado, é uma religião que também une. Peregrinos de muitos países viajam para Meca ou Medina. E depois há a língua. Existem, naturalmente, diferentes dialetos do árabe. Mas, em regra, as pessoas desta parte do mundo são capazes de se comunicarem sem muitos problemas.
Há um país árabe para o qual os sucessos de Marrocos são particularmente importantes. Muitos chamam esse país de 33º participante da Copa do Mundo…
Provavelmente você fala da Palestina. Se estamos a falar de países não participantes na Copa do Mundo, não há outro país no Qatar cuja bandeira esteja tão frequentemente lá. Isto, também, é mais um murro no nariz para o Ocidente. O Qatar é um patrono da causa palestina – doando muitas finanças para ajudar amplamente a independência palestinas.
E agora os Qataris fizeram vista grossa ao fato de que as bandeiras palestinas estão presentes no terreno. E, de alguma forma, forçaram a FIFA a fazer vista grossa também. Porque supostamente temos uma proibição de manifestações políticas e ninguém traz bandeiras de apoio à Rússia para as bancadas, por exemplo – embora os sérvios tenham posado fora dos estádios com tais bandeiras – e no entanto não há qualquer objeção a um grande setor com o slogan “Palestina Livre” aparecendo nos jogos do Marrocos.
Para a Palestina, este horário nobre nos meios de comunicação social foi conquistado precisamente por causa dos resultados do Marrocos. A mensagem está dando a volta ao mundo. De qualquer forma, os jogadores de futebol marroquinos usam regularmente bandeiras palestinas após os seus jogos e postam fotos com elas nas redes sociais. Como resultado, foram criadas zonas especiais de torcedores na Palestina para as pessoas torcerem pelo Marrocos em grande número. E isto é também mais uma prova de como as narrativas oficiais e as do próprio povo estão a divergir. Marrocos foi um dos poucos países árabes a estabelecer relações com Israel. Isto foi feito desafiando o sentimento público, 80% do qual indicava que não haveria apoio à iniciativa.
Israel está exigindo que a FIFA penalize o Marrocos por comemorar com bandeiras palestinas…
Não há qualquer hipótese de isso acontecer. Se a FIFA fosse fazer alguma coisa sobre essas bandeiras e ela não gostasse delas, já teria agido há muito tempo. Tal como fez com a iniciativa das braçadeiras com arco-íris, quando comunicou antecipadamente as sanções que imporia se alguém usasse o acessório. Aparentemente, o Qatar chegou a um acordo com a FIFA pelo qual faz vista grossa ao porte de bandeiras palestinas nas arquibancadas. Porque se a FIFA quisesse, já teria mandado retirar. Afinal de contas, os jogadores marroquinos já celebravam com as cores palestinas após a sua primeira vitória. Poderiam ter sido penalizados se fosse apenas a vontade da Fifa. Aparentemente, não havia.
Como Israel repercute o sucesso da Seleção do Marrocos?
Exatamente como estamos falando: as vitórias de Marrocos são vitórias palestinas. Chama-se a isto um ato anti-israelita. Esta celebração é anti-israelita. Há manchetes nos jornais após os jogos de Marrocos – vi uma recentemente – que o nacionalismo árabe ainda está vivo. Há muito ressentimento em relação aos organizadores por não fornecerem segurança adequada aos jornalistas e torcedores israelitas daquele país. A narrativa vai muito longe, mas acho que é algo a que nos acostumamos quando se trata da relação de Israel com o mundo árabe.